Foi com muita felicidade que recebi as notícias da conversão de duas uniões estáveis homoafetivas em casamento esta semana. Casamento entre homossexuais no Brasil: realidade em construção, demanda da sociedade. Estes são alguns dos muitos desdobramentos da decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu, analogicamente, como união estável (e, pois, como família) a união entre pessoas do mesmo sexo – no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132/RJ e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, em maio de 2011. Assim, desde que preenchidos determinados requisitos legais - consubstanciados na convivência factual pública (notória, ostensiva), contínua, duradoura e com perspectiva de vida em comum -, casais de pessoas do mesmo sexo formam uniões estáveis em nosso país, podem se casar e estão aptas ao usufruto de todos os direitos e ao exercício de deveres decorrentes do mesmo sentimento que une pessoas heterossexuais: o AMOR.
As decisões pioneiras, veiculadas em diversos meios de comunicação, ocorreram em Jacareí-SP e Brasília-DF. Os magistrados, Dr. Fernando Henrique Pinto (da 2ª Vara da Família de Jacareí) e Drª Júnia de Souza (da 4ª Vara de Família de Brasília) prolataram decisões que converteram, respectivamente, as uniões estáveis homoafetivas de Luiz André e José Sergio e Sílvia Del Vale e Cláudia Helena em casamentos – atendendo a todas as formalidades legais e lavrando, os cartórios, as devidas certidões. Estes, portanto, são os dois primeiros casos de casamento entre pessoas do mesmo sexo ocorridos no Brasil – entre muitos que virão.
Apesar de o regramento legal do casamento, em nosso país, ser, literalmente, entre homem e mulher, a mesma interpretação analógica que vem sendo dada à união estável em favor da união homoafetiva pode sê-la em favor dos homossexuais que pretendam se casar ou converter as suas uniões estáveis em casamento. Afinal, a própria Constituição afirma que a união estável é reconhecida, “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.” (§ 3º, art. 226, CF). É por esta razão que, acertadamente, o Poder Judiciário brasileiro, após a mencionada decisão do STF, vem autorizando conversões de uniões estáveis homoafetivas em casamento – o que, para os casais de pessoas do mesmo sexo, oferece uma maior segurança jurídica e uma plêiade mais ampla de direitos.
Quando fora publicada a 1ª edição do meu livro A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais (em março de 2005), quando ainda não havia ocorrido deferimento de adoção a par do mesmo sexo no Brasil, fui muito criticado e os argumentos contrários (até mesmo recentes) eram no sentido de que se tratavam de decisões isoladas (as que começaram a surgir no final de 2005), de juízes de primeiro grau e que estes pleitos não lograriam acolhimento pelos Tribunais Superiores do país. Para a surpresa dos mais conservadores ou preconceituosos, o ano passado (2010), o Superior Tribunal de Justiça, através da sua 4ª Turma, confirmou a decisão de um magistrado de primeiro grau que, na comarca de Bagé-RS, concedera a primeira adoção homoafetiva conjunta do país - a duas mulheres (decisão esta que já havia sido também confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul). E, finalmente, para dirimir as celeumas em torno desta questão, a partir desta recente decisão do STF, não poderão ser mais negados os pedidos de adoções a casais de pessoas do mesmo sexo. Por esta razão, será lançada, em julho, a 5ª edição desta minha obra, com o conteúdo todo revisado e atualizado de acordo com estas decisões – do STJ e do STF. O mesmo ocorrerá quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil: o número só tente a crescer e, mesmo ante o silêncio vergonhoso do Poder Legislativo no âmbito federal, o Poder Judiciário solidificará o entendimento favorável ao casamento homoafetivo, partindo dos juízes singulares para os tribunais.
Certamente, caso o Supremo venha, um dia, a analisar a constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil, o seu posicionamento também será favorável. A razão é simples: ao prever, no caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", o constituinte, rompendo com uma história de verdadeira exclusão constitucional, pôs, pela primeira vez sob a tutela estatal, a entidade familiar, sem dizer, necessariamente, que tipo de família é merecedor de proteção. Se até a Constituição de 1967, a única família albergada pela proteção estatal era a selada pelo casamento, a partir de Lei Maior de 1988, esta realidade foi modificada. Assim, o que delineia, hoje, o que é uma base familiar é a convivência afetiva das pessoas, que deve gerar efeitos na órbita do Direito das Famílias, para além deste ou daquele posicionamento ideológico, sócio-cultural específico ou religioso. É a perspectiva de vida em comum, aliada à convivência respeitosa e afetivamente estável que diferenciam a família dos demais agrupamentos humanos. Assim, formado por seres humanos que se amam, para além de qualquer restrição discriminatória, determinado grupo familiar já está sob a chancela protetora da nova ordem constitucional, a partir da sistemática do referido artigo 226, em sintonia com a base principiológica da Constituição Federal, que tem na dignidade da pessoa humana o seu eixo central de sustentação – conforme concluiu, por unanimidade, o STF, no julgamento da ADPF nº 132/RJ e da ADIN nº 4277.
O casamento, vislumbrado sob a laicidade do Estado, já vem sendo celebrado entre pessoas do mesmo sexo em diversos países do mundo. O Brasil não poderia restar fora deste panorama, especialmente por ser um Estado que se afirma, formalmente, Democrático de Direito, cuja Lei Maior erigiu como fundamentos da República Federativa a dignidade humana, a cidadania (art. 1º, incs. II e III, CF), vedando preconceitos e quaisquer formas de discriminação (art. 3º, inc. IV, CF). Afinal, em face da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, a celebração do casamento civil entre homossexuais atende aos princípios constitucionais - especialmente, os da dignidade e igualdade -, devendo se apartar a visão religiosa perante o Estado LAICO. Se a maior parte das igrejas somente reconhece, à luz da interpretação literal bíblica, que o casamento só pode ser celebrado entre homem e mulher, o Estado brasileiro não tem nada a ver com isto, porque, afinal, não pode ser porta-voz de religião ou doutrina de fé alguma. Os seus representantes devem servir a todas(os) as(os) cidadãos(ãs), independente de quaisquer características desses, especialmente se tais características forem direitos fundamentais – como é o caso da orientação sexual. Afinal, conforme bem preceitua o art. 1.513 do Código Civil, “é defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.” Não pode, o Estado ou o particular, fazê-lo. Se o casamento, à luz da legislação nacional, é civil (§ 1º, art. 226, CF e art. 1.512 do CC), esse pode e deve ser celebrado para contemplar a dignidade de milhares de casais homossexuais brasileiros que já convivem em uniões estáveis!
Parabéns a todas(os) nós por mais esta conquista laica e democrática!
Enézio de Deus Silva Júnior - Advogado; Membro do IBDFAM; Mestrando em Família pela UCSAL; Professor de Direitos Humanos (ACADEPOL e FTC-EAD); Gestor Governamental (servidor público EPPGG / BA); Autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais (4ª edição, Juruá Editora); Co-autor do livro Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (Editora Revista dos Tribunais).
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