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terça-feira, 1 de novembro de 2011

[ARTIGO] Quem são os “transtornados de gênero”? - Berenice Bento*

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O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é uma publicação da Associação Psiquiátrica Norteamericana (APA). Em 1980, na publicação de sua terceira versão, a transexualidade foi incluída e tipificada como um “Transtorno de Identidade de Gênero”. Em 1994 o Comitê do DSM-IV substituiu o diagnóstico de “Transexualismo” pelo de “Transtorno de Identidade de Gênero”. O Código Internacional de Doenças (CID) também passou a considerar o “transexualismo” como uma enfermidade. 


Desde que o gênero passou a ser uma categoria diagnosticável, no início dos anos 80, é a primeira vez que ocorre um movimento globalizado pela retirada da transexualidade do rol das doenças identificáveis como transtornos mentais. O movimento Stop Trans Pathologization consegue adesões em vários países, o que revela a capacidade de resistência de múltiplas vozes que se unem contra o poder da APA e do CID. No dia 22 de outubro – Dia Mundial de Luta pela Despatologização das Identidades Trans – há manifestações na África, Ásia, Europa, América Latina e América do Norte. Atualmente, são mais de 500 organizações engajadas nesta luta.


Nestes documentos há uma sutileza nefasta ainda não compreendida por gays, lésbicas, transexuais e travestis. A entrada do gênero como uma categoria nosológica autorizou médicos e profissionais das ciências psi. (psicologia, psiquiatria e psicanálise) de todo o mundo a cuidar e “tratar” de crianças, adolescentes e adultos que não têm um comportamento “adequado” para seu gênero. Quais sintomas despertariam a atenção para um possível “transtorno” de gênero? Um menino que gosta de brincar de bonecas, uma menina que tem preferências pelos jogos ditos masculinos, por exemplo. Mas qual o problema de um menino brincar de bonecas? O medo de que ele possua uma homossexualidade latente. O profissional que atenderá esta criança não poderá diagnosticá-la como homossexual, uma vez que há décadas não se pode mais patologizá-la. No entanto, o pai poderá sair do consultório com um laudo de que seu filho sofre de “transtorno de identidade de gênero na infância”. No dito popular: trocamos seis por meia dúzia. A homossexualidade continua sendo “tratada” e é o gênero que tem sido o passaporte para se praticar homofobia institucionalizada.


Há muitas expressões de gênero, uma multiplicidade de femininos e masculinos. Quais são os indicadores para definir os “normais de gênero”? Quem são os “doentes de gênero”? O DSM e o CID terminam por produzir a violência institucionalizada. É importante lembrar que os dois códigos padecem do mesmo mal: falta-lhes legitimidade científica. Como provar a ideia de uma normalidade de gênero? Não há nenhum exame clínico que sustenta a tese de que os atributos masculinos (competitividade, ousadia, racionalidade) são inerentes aos homens, tampouco que sensibilidade e emotividade são características hormonais que definem a feminilidade. Os gêneros não são determinados por estruturas biológicas. Todos nós carregamos atributos masculinos e femininos. Daí ser um equívoco pensarmos em identidade de gênero. Não temos uma identidade de gênero.


As expressões de gênero não revelam a sexualidade do sujeito. Estas duas dimensões devem ser pensadas de forma deslocadas. Ser um homem gay não define os atributivos e as múltiplas possibilidades de se viver o gênero. Nestes documentos, o gênero só tem coerência quando referida à sexualidade, e a heterossexualidade funciona como o referente de saúde e normalidade.


O DSM e o CID orientam os Estados e seus operadores (médicos/as, psicólogos/as, psiquiatras, juízes/as, trabalhadores/as sociais, docentes) na determinação de quem pode ter acesso à cidadania e quem estará dela suprimido. Muitas pessoas transexuais que esperam ansiosamente pela cirurgia de transgenitalização receiam que a retirada da transexualidade da categoria de transtorno mental autorizaria os Estados a excluírem o financiamento integral de todo o processo transexualizador e tornaria mais distante a luta pelo custeamento do processo travestilizador. Mas é dever do Estado assegurar os meios práticos para garantir o acesso universal e igualitário à saúde e ao bem-estar. Esse é um direito de todo cidadão e cidadã. A assistência dos Estados deve ser completa, inclusive no que se refere à mudança de nome nos documentos de identidade legal das pessoas trans, sem condicioná-la à realização de cirurgias ou outros procedimentos médicos nem perícias psiquiátricas. A luta pela retirada da transexualidade do DSM e do CID abre a possibilidade de começarmos a lutar por um mundo sem gênero.

*Doutora em Sociologia. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenadora do Núcleo Tirésias/UFRN. É autora do livro “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”.

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