Então, já já é Natal. E o que se tem pra fazer? Seja lá o que for, fugir da estética natalina é quase impossível, gostemos ou não do falso clima de boa-vizinhança que se instala nesta época. O Natal hoje em dia é uma metáfora da decadência do cristianismo visto à luz da experiência histórica do Cristo, ou alguém está convencido de que um bebê na manjedoura (cocho), uma mulher bastante jovem com seu companheiro bem mais velho, uma gravidez inesperada cuja paternidade vai ser vista como escândalo ou estrangeiros a procura de proteção em uma noite fria são os símbolos que ainda prevalecem nesta festa? Até a Igreja já os abandonaram!
Por isso, a magia do Natal, que ao longo das últimas décadas tem se tornado cada vez mais transnacional e transacional, não vai acabar de uma hora para a outra. Prova disso é o que ocorreu em uma cidade aqui no Brasil há alguns dias. A casa do Papai Noel, erguida em uma praça em frente a uma igreja no Estado de Santa Catarina, foi assaltada. Levaram balas, enfeites e ursos de pelúcia.
Conseguiram prender os suspeitos de roubar o Papai Noel, mas a minha surpresa foi que os ladrões não eram crianças. Aí está o clima do verdadeiro espírito natalino, que atinge a todos, independentemente da idade e da quantidade de dinheiro no bolso: é tempo de comer doces, presentear e enfeitar a casa. Tempo de receber, roubar ou conquistar a sua recompensa.
O bom velhinho assaltado, de saco vazio, sem doces e com a casa toda revirada é o mais próximo da minha realidade que posso imaginar. Mas, o que faz sucesso mesmo é aquele que tem o que oferecer a quem pode pagar. Aquele que fica sempre à espera de alguém para sentar em seu colo, prioritariamente crianças. Está aí mais uma característica do espírito natalino, apagar o pânico moral que qualquer outra imagem que envolva um homem desconhecido e uma criança no colo está prestes a causar. Que mal um velhinho gordo, branco, cercado por mulheres, anões trabalhadores, ursos de pelúcia, enfeites e doces pode causar? Nenhum, não é a toa que está em quase todos os shoppings. Esse é o problema daquele que foi roubado: os shoppings! Se o Noel assaltado estivesse escolhido construir a sua casa dentro de um shopping não teria sido violado. Mas ele resolveu se instalar fora do lugar protegido pelo mercado. Isso não tem nada a ver com o espírito natalino. Deu mole.
O encantamento dos presentes, que move a necessidade das compras, tem no assexuado Papai Noel sua estratégia de reinvenção anual do Natal. Nada de pobreza e apelos de compaixão com o que ainda podemos lembrar da história contada pelos cristãos. O capital é mais forte do que a religião do passado e do que o pânico moral do presente em torno da ameaça das relações sexuais entre crianças e adultos. O passe de mágica natalino, o mesmo que faz com que os veadinhos voem, faz com que o Papai Noel esconda o nosso medo de aceitarmos afetos entre homens mais velhos e crianças como se fossem sempre ameaças de violência sexual.
É claro que não cabe aqui incentivar práticas de vivências da sexualidade tidas como ilegais. Por outro lado, não quero contribuir com a caçada cega contra tudo aquilo que temos classificado como pedofilia, ainda que reconheça o valor e a necessidade do enfrentamento a toda forma de violência sexual na infância, inclusive a silenciosa agressão causada pela mídia em seus processos aceitos de pedofilização, isto é, dos usos e abusos dos corpos e dos desejos das crianças em prol das boas vendas, tão em alta no mês de dezembro. Porém, o que penso ser interessante no encantamento do natal é o fato de a figura do Papai Noel poder contribuir para a reflexão de o quanto o capital nos nubla a moral.
Explico: se há afeto e carinho envolvido no espírito natalino, não está na imagem do bom velhinho. E isso é que é uma pena. O brilho transcende o dono do colo. O desejo não é para o que ele pode oferecer, mas o que ele pode entregar que levará ao prazer. O presente vale mais do que o beijo num rosto fofo e rosado qualquer. O presente material encanta e justifica o bem pela troca, não o bem pelo bem. O nosso Natal mostra que sem recompensa não há solidariedade, afinal, cada vez mais se tem acreditado na falácia do “só ganha quem merece”.
Por isso, a carência não é de colo, é de bens. É isso que o assalto da casinha na praça e as filas em frente à cadeira confortável dos Papais Noéis nos revelam. Seja na calada da noite em frente a uma igreja qualquer ou sobre as luzes brilhantes e o ar condicionado dos shoppings, o que se busca é a recompensa. E ela vem mais do tamanho dos bolsos do que dos sonhos. Sob a falsa idéia de que somos todos iguais e temos as mesmas oportunidades de sermos bons, ficamos enfeitiçados pelo espírito natalino. Deixamos a falsa moral de lado quando não nos lembramos que não pega bem deixar as crianças sentarem no colo de estranhos, porque somos cúmplices do toma lá da cá, de um troca-troca comercial, como se fazer o bem justificasse o presente. A recompensa nos encanta, por isso é que vamos às compras.
E, para não ser de todo pessimista, sem deixar com que percamos a importância de sermos encantados por muitas coisas na vida, é preciso compreender que certas magias nos impedem de ver muitas verdades transformadoras, ou, pelo menos, a realidade que nos incomoda, que se vista, pode nos questionar, nos tornar menos conservadores, mais solidários e re-encantados por outras coisas mais importantes. Acabamos, via o espírito natailino, sendo ingênuos demais, indo além da pitada de magia necessária para nos diferenciarmos dos bichos, e, paradoxalmente, por estarmos encantados em excesso, nos igualando a eles.
O natal deveria ser o tempo de quebrarmos o encanto que nos torna bichos, como aqueles adestrados que balançam o rabo quando recebem a recompensa. Deveríamos ser ingênuos o suficiente para tornar-nos uma ameaça e acreditar que as coisas podem mudar. O colo é mais importante do que o presente. Ele sim pode ser perigoso, não por ser sempre uma possível ameaça sexual às crianças, mas por nos fazer crescer encantados por outras coisas que não o bem material, como por exemplo, as múltiplas diferenças e os mais variados e consentidos afetos. Como isso não tem nada a ver com o difundido espírito natalino, autorizamos as crianças permanecerem no colo do Noel apenas os segundos necessários para que elas façam os seus pedidos, pra depois, com elas, irmos correndo comprar.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.
Por isso, a magia do Natal, que ao longo das últimas décadas tem se tornado cada vez mais transnacional e transacional, não vai acabar de uma hora para a outra. Prova disso é o que ocorreu em uma cidade aqui no Brasil há alguns dias. A casa do Papai Noel, erguida em uma praça em frente a uma igreja no Estado de Santa Catarina, foi assaltada. Levaram balas, enfeites e ursos de pelúcia.
Conseguiram prender os suspeitos de roubar o Papai Noel, mas a minha surpresa foi que os ladrões não eram crianças. Aí está o clima do verdadeiro espírito natalino, que atinge a todos, independentemente da idade e da quantidade de dinheiro no bolso: é tempo de comer doces, presentear e enfeitar a casa. Tempo de receber, roubar ou conquistar a sua recompensa.
O bom velhinho assaltado, de saco vazio, sem doces e com a casa toda revirada é o mais próximo da minha realidade que posso imaginar. Mas, o que faz sucesso mesmo é aquele que tem o que oferecer a quem pode pagar. Aquele que fica sempre à espera de alguém para sentar em seu colo, prioritariamente crianças. Está aí mais uma característica do espírito natalino, apagar o pânico moral que qualquer outra imagem que envolva um homem desconhecido e uma criança no colo está prestes a causar. Que mal um velhinho gordo, branco, cercado por mulheres, anões trabalhadores, ursos de pelúcia, enfeites e doces pode causar? Nenhum, não é a toa que está em quase todos os shoppings. Esse é o problema daquele que foi roubado: os shoppings! Se o Noel assaltado estivesse escolhido construir a sua casa dentro de um shopping não teria sido violado. Mas ele resolveu se instalar fora do lugar protegido pelo mercado. Isso não tem nada a ver com o espírito natalino. Deu mole.
O encantamento dos presentes, que move a necessidade das compras, tem no assexuado Papai Noel sua estratégia de reinvenção anual do Natal. Nada de pobreza e apelos de compaixão com o que ainda podemos lembrar da história contada pelos cristãos. O capital é mais forte do que a religião do passado e do que o pânico moral do presente em torno da ameaça das relações sexuais entre crianças e adultos. O passe de mágica natalino, o mesmo que faz com que os veadinhos voem, faz com que o Papai Noel esconda o nosso medo de aceitarmos afetos entre homens mais velhos e crianças como se fossem sempre ameaças de violência sexual.
É claro que não cabe aqui incentivar práticas de vivências da sexualidade tidas como ilegais. Por outro lado, não quero contribuir com a caçada cega contra tudo aquilo que temos classificado como pedofilia, ainda que reconheça o valor e a necessidade do enfrentamento a toda forma de violência sexual na infância, inclusive a silenciosa agressão causada pela mídia em seus processos aceitos de pedofilização, isto é, dos usos e abusos dos corpos e dos desejos das crianças em prol das boas vendas, tão em alta no mês de dezembro. Porém, o que penso ser interessante no encantamento do natal é o fato de a figura do Papai Noel poder contribuir para a reflexão de o quanto o capital nos nubla a moral.
Explico: se há afeto e carinho envolvido no espírito natalino, não está na imagem do bom velhinho. E isso é que é uma pena. O brilho transcende o dono do colo. O desejo não é para o que ele pode oferecer, mas o que ele pode entregar que levará ao prazer. O presente vale mais do que o beijo num rosto fofo e rosado qualquer. O presente material encanta e justifica o bem pela troca, não o bem pelo bem. O nosso Natal mostra que sem recompensa não há solidariedade, afinal, cada vez mais se tem acreditado na falácia do “só ganha quem merece”.
Por isso, a carência não é de colo, é de bens. É isso que o assalto da casinha na praça e as filas em frente à cadeira confortável dos Papais Noéis nos revelam. Seja na calada da noite em frente a uma igreja qualquer ou sobre as luzes brilhantes e o ar condicionado dos shoppings, o que se busca é a recompensa. E ela vem mais do tamanho dos bolsos do que dos sonhos. Sob a falsa idéia de que somos todos iguais e temos as mesmas oportunidades de sermos bons, ficamos enfeitiçados pelo espírito natalino. Deixamos a falsa moral de lado quando não nos lembramos que não pega bem deixar as crianças sentarem no colo de estranhos, porque somos cúmplices do toma lá da cá, de um troca-troca comercial, como se fazer o bem justificasse o presente. A recompensa nos encanta, por isso é que vamos às compras.
E, para não ser de todo pessimista, sem deixar com que percamos a importância de sermos encantados por muitas coisas na vida, é preciso compreender que certas magias nos impedem de ver muitas verdades transformadoras, ou, pelo menos, a realidade que nos incomoda, que se vista, pode nos questionar, nos tornar menos conservadores, mais solidários e re-encantados por outras coisas mais importantes. Acabamos, via o espírito natailino, sendo ingênuos demais, indo além da pitada de magia necessária para nos diferenciarmos dos bichos, e, paradoxalmente, por estarmos encantados em excesso, nos igualando a eles.
O natal deveria ser o tempo de quebrarmos o encanto que nos torna bichos, como aqueles adestrados que balançam o rabo quando recebem a recompensa. Deveríamos ser ingênuos o suficiente para tornar-nos uma ameaça e acreditar que as coisas podem mudar. O colo é mais importante do que o presente. Ele sim pode ser perigoso, não por ser sempre uma possível ameaça sexual às crianças, mas por nos fazer crescer encantados por outras coisas que não o bem material, como por exemplo, as múltiplas diferenças e os mais variados e consentidos afetos. Como isso não tem nada a ver com o difundido espírito natalino, autorizamos as crianças permanecerem no colo do Noel apenas os segundos necessários para que elas façam os seus pedidos, pra depois, com elas, irmos correndo comprar.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.
Publicada originalmente na coluna Disparatada do site A Capa.
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