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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

[ARTIGO] Lésbicas Negras na Academia: Invisibilidade Visível - Doris Davenport

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Doris Davenport
Por forma de introdução, me parece que eu VIVI na academia toda minha vida: dos cinco anos de idade até agora (trinta e dois de idade), eu[2] sempre estive na escola, seja estudando, lecionando, ou saindo e entrando. No presente momento, eu estou num programa de PhD (University of Southern California, Inglês). Também me parece que tenho sido uma feminista toda minha vida, e recentemente uma lésbica muito política ou politizada. eu tenho orgulho de estudar literatura; eu igualmente tenho orgulho de ser uma lésbica. Mas o que isso significa é o seguinte:
eu sou a única estudante Negra (que eu saiba) em meu departamento de pós-graduação em inglês. Antes de mim, havia uma outra mulher[3] Negra, a qual eu conhecia vagamente. Em setembro de 1979, na primeira vez que fui a USC, eu descobri (por uma estudante branca) que essa Negra-ht[4] havia dito a algumas pessoas na faculdade que eu era uma sapatão-feminista “andando por aí tentando converter as pessoas”. Aquela irmã Negra pretendia me causar um enorme dano. Mas acabou me fazendo um favor. Quando cheguei à USC eu não tive que sair do armário, e sequer deixei algumas pessoas saberem que a sedução física foi a única parte que ela errou. As pessoas brancas estavam um pouco confusas sobre como me abordar: eu não cabia nem em seus estereótipos de uma “nacionalista Negra” nem nos de uma sapatão. (eu podia vê-las pensando, sobre o último, “mas ela não ‘parece’ com uma.”) Isso significou que eu estava ou sendo ignorada, ou falada pelas costas. eu ri e segui em frente.
Ao mesmo tempo, fiquei “presa”, por obrigação, a ministrar o único curso sobre literatura Negra oferecido na USC. A única professora negra tinha se demitido, e por eu ser Negra, ofereceram-me a turma como parte dos meus deveres como professora assistente. eu aceitei feliz, já que literatura Negra é uma das minhas maiores áreas. No entanto, ninguém verificou minha habilidade em lecionar o curso. Novamente, estereótipo, e benignamente negligenciada. eu lecionei meu curso (bem) e segui em frente.
Então, no semestre seguinte (janeiro de 1980), me inscrevi num curso que ostensivamente cobria a “literatura Americana desde a Segunda Guerra Mundial”. Não havia pessoas Negras ou mulheres no programa. Quando perguntei ao professor (um menino branco de meia-idade) sobre essa lacuna, ele disse que eu poderia produzir um artigo sobre LeRoi Jones ou alguém do tipo, ou largar a disciplina; que não haveria alterações no programa por minha causa. eu prontamente disse a ele não, para ambas alternativas, e chamei sua atenção pela estereotipização, e além disso disse que ele abordava unicamente o que podia ver: sexo e cor. eu disse, junto a isso, que sou uma lésbica, então você pode ir em frente e insultar essa parte de mim também. (Ele era novo, e aparentemente não tinha ouvido a “história sai-do-armário”). Ele fez a gentileza de se semidesculpar privadamente, mas nossa “discussão” aconteceu na frente de toda turma.
A cada semestre em meu curso de literatura Negra, tive um registro inicial de pelo menos trinta e duas pessoas, a maioria Negra. A cada semestre, algumas ou abandonam o curso ou se tornam muito desagradáveis por causa do meu feminismo e meus requisitos “rigorosos”. Meu feminismo significa que aponto tanto feminismo quanto chauvinismo na literatura e nas respostas em sala de aula, especialmente dos homens. Os requisitos significam que estudantes devem produzir pensamento original – muito doloroso, para muitas pessoas. eu sou, para elas, simplesmente outra figura de autoridade – o inimigo – e o fato de que somos todas Negras, todas estudantes e todas em território “hostil” não parece fazer muito sentido para elas. Se minha cor significa qualquer coisa para elas, é simplesmente que meu curso deve ser um A fácil.
Quase todas/os estudantes Negras/os em faculdades predominantemente brancas ganham uma nota chamada “B automático” (seja para Black [Negra/o], ou porque você não pode fazer Better [melhor]). Às vezes, você ganha um “A automático” (Actually [de fato, a bem da verdade], significa que a/o prof está numa onda de culpa/racismo[5]), mas, de qualquer forma, o trabalho que você produz não é julgado por si só.
É essa fragmentação, na vida e na academia, que quero comentar. Ela funciona assim: estudos lesbianos (e lésbicas) pertencem aos estudos das mulheres. A literatura Negra é tema transversal subsumido aos estudos étnicos. Para a maioria das pessoas, os departamentos de inglês geralmente ganham a alcunha de estudos esotéricos. Então, o que acontece com uma híbrida como eu? eu me encaixo em todas as categorias acima, e outras mais. eu nunca tentei camuflar o fato de que sou uma lésbica. Aliás, algumas pessoas dizem que o ostento. (eu uso colar e brinco com um ♀♀   e tenho o mesmo símbolo costurado na minha bolsa marrom de livros, pintado de branco para ter mais destaque.) Estranhamente, isso dificilmente é comentado de forma direta, mesmo por outras lésbicas. Para os outros, a rota de ataque mais visível e mais acessível é via minha cor: eu recebo o que a maioria de estudantes Negrxs recebe, com alguma merda incluída, devido a ser feminista-lésbica.
A merda incluída significa que se eu digo bom dia, eles me desafiam. Talvez seja porque sou, também, articulada, franca (ou simplesmente porque falo), e não tenho a mediocridade da pós-graduação (apesar de que às vezes me entedie até a morte com as jornadas egóicas dos meninos brancos professores[6]). Então, para eles, aqui está esse alvo vivo e ambulante que não é unicamente Negra, mas Negra-e-articulada, Negra-e-não-vou-aceitar-essa-merda, Negra e lésbica feminista. Tudo isso de uma vez é um alvo confuso. Mas tentam. E eu, constantemente, luto em resposta, ou ao menos tento lutar contra a alienação e o isolamento, de qualquer forma que eu possa. Às vezes, mando minha mente aoPaine College, especialmente na primavera. Frequentemente, leio Hurston ou Toni Morrison ou minha própria prosa. Geralmente fico bêbada e vou dormir, lembrando a mim mesma que eu tenho sim uma visão de outra realidade…
Além disso, eu recentemente percebi que tenho funcionado graças a um incentivo inconsciente (inconsciente, mas forte e profundamente arraigado). Ou seja, o “legado” de educadorxs Negrxs, um legado de amor, disciplina, altos padrões e compromisso, o qual herdei por frequentar uma escola e faculdade exclusivamente Negra. Ou seja, o fato de que todxs as/os professorxs importantes em minha vida (excluindo uma mulher branca) eram Negrxs. Por outro lado, eu quero dar continuidade ou instigar uma “nova” tradição: a de ser uma educadora Negra, brilhante, lésbica – orgulhosamente afirmada.
eu estou nessa área porque amo literatura apaixonadamente, apesar de saber que há uma grande quantidade de absurdos desnecessários e humilhantes envolvidos na academia, ponto. Ainda, eu sei também que sou uma lésbica, feminista, poeta, escritora, crítica, professora e geralmente uma vidente abençoada pela deusa. Portanto, eu me recuso a deixar isso me dissuadir – esse tempo. Em suma, eu luto contra a fragmentação o melhor que posso, e quantas vezes for destruída eu regenero a mim mesma, mas não é fácil, e é muito solitário.
eu não iria me importar se “o inimigo” se ativesse a uma questão por vez, ou se lutasse “limpo” e abertamente. Mas todas nós sabemos que eles não agem dessa forma. Por exemplo, no outono passado (outubro de 1980), a nova chefe de departamento, branca, me informou que as normas da faculdade impediam professorxs assistentes de lecionar cursos de literatura. Além disso, ela não considera que estamos preparadxs (ou seja, somos imbecis) para lecioná-los. Então, no outono (setembro de 1981) eu não vou lecionar meu curso de literatura Negra, se depender dela – a despeito do fato de que eu venho lecionando esse curso há dois anos. eu sinto, em outras palavras, ao meu redor uma aura de intensa hostilidade-medo-espanto, quase o tempo todo. eu ouço as pessoas se relacionando a uma imagem – uma projeção de suas imaginações doentes e outras neuroses estereotipadas. me vejo lutando uma batalha constante em pelo menos dez níveis de uma única vez, simplesmente para cumprir os requisitos das disciplinas! – mesmo quando eu continuo a escrever e recitar minha poesia de mulher. Tudo isso é ignorado na academia: recentemente, publiquei eu mesma um livro meu de poesia e anunciei o Grande Evento no informativo do departamento. Até o momento ninguém comentou sobre o livro. Me parece que o objetivo é sabotar a mim (nós) de todas as formas possíveis, e na maior parte do tempo eu nem acho que é intencional. Eles não podem evitar. Mas nada disso ajuda meu espírito[7]. O que ajudaria é o seguinte:
Aquelas de nós que somos Negras lésbicas na academia poderíamos ao menos começar uma rede de sobrevivência e apoio – informativos, correspondências públicas mensais, o que seja, assim não nos sentiríamos sozinhas e isoladas. Em outras palavras, estabelecer algum tipo de sistema para nossa sobrevivência ecelebração mútua. Um sistema para prevenir que sejamos individualmente devastadas e individualmente negadas. Afinal, nós sabemos que ser lésbica, nesse ponto, não é uma fase pela qual vamos “passar”. Nem, se você é persistente como eu sou, vamos abrir mão do que vemos como nossos objetivos profissionais. NEM deveríamos procurar tanto apoio em pessoas que não nós mesmas. Nós temos que achar uma forma de minimizar essa merda devastadora, e maximizar nosso potencial – em todos os níveis. (Também pode ser útil se mais de nossas irmãs saírem do armário.)
eu acho que somos uma ameaça ao “sistema” (já que mulheres Negras são tomadas como ameaça para todo mundo, ponto), mas não de verdade, e não ainda. eu só quero estar aqui, e eu quero que minhas irmãs estejam aqui, tempo suficiente para fazer algumas mudanças radicais e positivas. Mudanças na forma com que Negras lésbicas são vistas e tratadas na academia, e no resto do mundo ir-real. Mudanças na forma com que somos apresentadas e percebidas. Mudanças desse mundo morte-orientado para um mundo mais Deusa-orientado, amoroso-pela-vida.

[1] Tradução feita em janeiro de 2012. DAVENPORT, Doris. Black lesbians in academia: visible invisibility. In: ZIMMERMAN, Bonnie; McNARON, Toni A. H. (Ed.). The new lesbian studies: into the twenty-first century. New York: The Feminist Press, 1996. p. 9-11. Agradeço à autora por autorizar, de forma muito generosa e divertida, a publicação da tradução no blog http://zami.onira.org.
[2] Em todas as ocorrências do texto, a autora opta por grafar o pronome pessoal da primeira pessoa do singular I em letra minúscula, inclusive depois de ponto (é habitual, quase compulsória, a grafia com i maiúsculo para diferenciar o pronome da vogal). Mantive a grafia conforme o texto em inglês, como fica nítido no parágrafo seguinte. Nota da Tradutora (NT).
[3] A autora usa, ao longo do texto, o termo womon, variação de woman usada na black talk. Não encontrei uma correspondência viável em português brasileiro, apesar de ter pensado nos termos “mulhar” ou “mulhé” . Além disso, traduzi como “mulheres” o termo wimmin, também usual na black talk como uma variação do plural women. NT.
[4] Davenport usa het, gíria para heterossexual – escolhi a gíria brasileira “ht”, usada entre lésbicas daqui. NT.
[5] Essa foi a expressão de mais difícil tradução. Em inglês, a autora escreveu “Actually, it means the prof is guilt/racist tripping”, referindo-se tanto à condescendência com que algumas pessoas julgam pertinente tratar pessoas negras como forma de “reparação” quanto ao racismo implícito que há nessa prática. A minha realidade de estudante universitária cotista (a Universidade de Brasília, onde me formei em Letras – Português e depois comecei um curso ainda não concluído de Tradução – Inglês foi a primeira instituição federal a adotar cotas de ingresso via vestibular para pessoas negras) encontra repercussão imediata no que a autora fala, apesar de não ser fácil explicar esses mecanismos velados do racismo condescendente/paternalista que é usado, inclusive, como crítica falaciosa ao desempenho e competência de estudantes cotistas. Agradeço a Patricia Valério pela ajuda com a tradução dessa expressão; optei por manter alguns trechos em inglês, com a tradução entre [colchetes], para explicitar o jogo entre as menções e as palavras.
[6] A expressão usada pela autora é white boy professors. Como o pb tem a flexão de gênero explícita no substantivo “professores”, tanto a ênfase que a autora dá ao gênero docente quanto um ar de deboche implícito no termo boysse perderam na tradução. NT.
[7] A autora usou state of mind; uso a tradução “espírito” em sentido mais situacional que esotérico. NT.

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