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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Entrevista com o autor Valdeck Almeida de Jesus

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Do blog de Kiko Riaze

Quando entrei em contato com Valdeck Almeida de Jesus (foto) pela primeira vez, tinha em mente apenas trocar algumas palavras sobre o concurso de contos LGBT’s que ele organizou no ano passado e no qual meu amigo Thiago Thomazini foi o grande vencedor com o seu conto “As Cidades”. A idéia original era fazer uma entrevista com o Thiago, e usaria algumas palavras do Valdeck como uma espécie de apresentação do concurso e da antologia de contos que surgiu a partir dele. Entretanto, diante da grandeza da trajetória pessoal e literária de Valdeck Almeida de Jesus, eu não podia deixar de dedicar a ele um post especial.

Valdeck é baiano da cidade de Jequié. Nascido em uma família pobre que morava em casa de taipa, filho de pais analfabetos que não tinham condições de sustentar 8 filhos, Valdeck passou uma rasteira num destino aparentemente inevitável e deu a volta por cima. Fez dos livros a porta de saída de uma vida de miséria, ensinou a sua própria mãe a ler e escrever e venceu na vida. Hoje, Valdeck é escritor, jornalista, poeta e funcionário público federal. Premiado em vários concursos literários, com menção honrosa em tantos outros, Valdeck se tornou um expoente da cultura baiana e, obviamente, brasileira.

Sua obra é extensa. Possui poemas publicados em mais de 50 antologias, tem participação ativa em eventos culturais  e possui vários livros publicados, entre eles um livro que conta a trajetória de luta e vitória de sua família, chamado Memorial do Inferno – a saga da Família Almeida no Jardim do Eden. 

Possui ainda um livro de poemas com temática gay lançado em Nova York: “Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet”, e sua atuação em prol da comunidade LGBT baiana rendeu a ele o Prêmio Luiz Mott de Cidadania, em 2008.

Em sua entrevista para o Subvertendo Convenções, Valdeck fala sobre o concurso de contos LGBT’s que ele promoveu, a chamada literatura gay e militância, além de sua amizade com o ex-BBB Jean Willys.

Vale muito a pena conferir:

Subvertendo Convenções: O Prêmio Valdeck Almeida de Jesus publica obras inéditas de autores desconhecidos desde 2005. O que o levou a tomar a iniciativa de criar uma versão LGBT para o concurso?

Eu sou um sonhador, e como dizia Raul Seixas, “Sonho que se sonha só. É só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”. Eu sempre tive sonhos, ainda tenho muitos e, apesar de a vida moderna não permitir mais a gente sonhar, eu insisto.

Não acredito mais em papai noel nem em fada (risos), mas me permito fantasiar, embarcar em sonhos possíveis. E todos os meus sonhos eu os torno possíveis. Senão, a vida perderia a graça, a magia, não é mesmo?

Bem, falando de poesias, conheci textos poéticos ainda criança, no Instituto de Educação Régis Pacheco, em Jequié, onde estudei. Dali pra frente comecei a imitar os poetas, escrevendo com rima, cadência, medindo as sílabas etc. Depois tive contato com poetas mais contemporâneos e passei a fazer poesia livre. A liberdade sempre me atrai, me fascina.

Meu primeiro sonho em relação a poesia foi publicar um livro. Fui enganado várias vezes através de promessas de políticos. O jornal de minha cidade até publicou uma matéria sobre o lançamento de um livro meu, que nunca saiu da gaveta. Fiquei vinte anos esperando pelo milagre. Quando cansei de esperar botei o pé na estrada e publiquei “Heartach Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet”, por uma editora americana, em 2004. No ano seguinte lancei “Feitiço contra o feiticeiro” (que tinha esperado vinte anos para ser publicado) e “Memorial do Inferno. A saga da Família Almeida no Jardim do Éden”, prefaciado por Lázaro Ramos e cuja renda doei para as Obras Sociais Irmã Dulce.

Resolvi patrocinar um prêmio literário que incentivasse autores desconhecidos, inéditos ou com pouco espaço na literatura, pois sei que as editoras não incentivam poetas. Passados cinco anos lançando livros de poesia pelo Brasil todo, percebi novas demandas, principalmente pela literatura mais marginal que existe, a mais discriminada e maldita: a literatura gay. Infelizmente o que se tem publicado ou divulgado sobre gays e lésbicas são textos mais ligados a pornografia, a doenças sexualmente transmíssveis, violência e o lado cômico, trágico, exótico. O gay sempre é retratado como motivo de riso, em programas de humor, em novelas etc. Quase nunca aparece um gay intelectual, profissional no que faz, casado etc. Só se mostra piadas, brincadeiras e atitudes que não representam a maioria dos LGBTs.

A versão de contos LGBTs dentro do Prêmio Literário Valdeck Almeida de Jesus veio justamente preencher uma lacuna e fincar um marco. O primeiro requisito do concurso que realizei foi exigir que os textos não desmoralizassem, não fossem homofóbicos nem caricatos. Claro que as personagens e até os narradores poderiam ter seus preconceitos, mas o objetivo do livro não era estigmatizar ainda mais uma parcela da população que sempre foi massacrada, odiada, assassinada impunemente. Basta ler os relatórios que o Grupo Gay da Bahia divulga na mídia todos os anos. Eu não queria nem quero reforçar estereótipos e jamais permitiria a publicação de qualquer texto que ferisse a integridade, a moral, ou que achincalhasse gays, lésbicas, travestis, transsexuais, transformistas etc.

Eu sempre defendi os direitos humanos, apoio minorias, pois sou parte dessa minoria. E mesmo que não o fosse, minha visão de mundo não me permite agir de outra forma.

SC: Como participante ativo de rodas e saraus literários você tem contato direto com a realidade de escritores e conhece bem as dificuldades para publicação de uma obra. Acha que as obras de temática homossexual enfrentam maior resistência do mercado ou as editoras já as consideram como um novo filão a ser explorado?

Eu acho que literatura é literatura, como arte é arte. Os rótulos servem apenas para diferenciar, discriminar. Eu diria que os homossexuais são discriminados em tudo, e qualquer coisa que seja ligada à temática sofre resistência de editoras, livrarias, jornais, distribuidores etc.

Agora já existe um aceno tímido do mercado por livros, filmes, revistas que tragam à tona a discussão da homossexualidade. Mas isso não pode ser confundido com apoio, pois as editoras, com poucas e raras exceções, publicam o que é consumido mais facilmente. Nem mesmos os gays têm coragem de publicar seus livros, colocar no papel os seus sentimentos, medos, buscas. Aos poucos, entretanto, esse movimento de dentro (do armário) para fora, vai tomando corpo. Nem todo gay gosta de ler textos referentes à homossexualidade. Alguns amigos que conheço têm horror a se informar, pois eles preferem ficar enrustidos, desinformados, culpando o sistema e a sociedade por não serem aceitos. Outros, entretanto, já buscam se politizar, se informar e lutar por respeito, mesmo que a luta seja nos bastidores, através de blogs assinados sob pseudônimo (www.gayrotodeprograma.blogspot.com).

Acredito que, independentemente de haver demanda, reprimida ou não, o que falta é coragem para investir em livros de boa qualidade editorial, contando histórias de verdade, dramas pessoais, ficção com tramas atraentes. Algo já está sendo feito por bons escritores homossexuais e boas editoras. Mas tudo é muito incipiente ainda. Tenho um sonho que um dia vou ver livros, filmes e outras criações artísticas por todo canto e não apenas em lugares “especializados”. Não gosto de guetos, de lugares específicos para este ou aquele grupo social. Defendo a liberdade de ir e vir para todos e que todo mundo possa expressar ideias e sentimentos em qualquer lugar, seja num shopping, na praia, rua, saguão do prédio onde mora etc.

SC: O que você acha do termo “Literatura Gay”? Concorda com essa classificação?

Já respondi um pouco sobre esta pergunta. Não gosto de rótulos, etiquetas e coisas do gênero. Se tem que diferenciar um livro, que se ponha dois homens ou duas mulheres se beijando ou em atitudes de carinho e afeição na capa, por exemplo. Chamar uma criação literária de literatura gay talvez chame a atenção para algo que não está naquela obra, ou seja, se confunde muito “gay” com sexo, depravação, promiscuidade. E por causa deste entendimento equivocado tudo ou quase tudo que se rotula como “gay” tem sido compreendido como sexual, como pornográfico. Quando se vai a um cinema ver um filme “gay”, a ideia que esta palavra evoca é que haverá muita putaria, sacanagem e sexo selvagem na tela. E as pessoas se frustram quando não encontram isso… E mesmo quando há cenas românticas, de afeto, carinhos as pessoas se chocam. Eu assistia ao filme “O segredo de Brokeback Mountain” e vi muita gente sair apressada da sala de exibição quando começaram as cenas de afetividade.

Eu não gosto de perceber livros, filmes etc com um rótulo. Rótulo diferencia, discrimina. Prefiro ver a arte como arte.

SC: Você tem um livro de poemas em língua inglesa, lançado em Nova York, chamado “Heartache Poems. A Brazilian Gay Man Coming Out from the Closet”. Fale um pouco sobre este trabalho.

Este livro retrata uma vida conturbada, difícil, dura, que vivi no interior da Bahia. Imagine o que é um menino católico, nascido e criado em meio a padres, freiras, catecismos etc, se sentir diferente e não poder compartilhar os sentimentos, falar das emoções. E o pior: ter que namorar garotas, camulhar, fingir, se esconder até mesmo de si. Eu me masturbava vendo revistas de cosméticos, nas quais havia imagens de rapazes e depois ia abraçar minha namorada. Eu me sentia um monstro, mentiroso, pervertido. O sentimento que eu tinha por garotas era meio forçado. Tinha que demonstrar o tempo todo uma masculinidade que eu não tinha, não sabia como ter. E ouvia piadinhas, gracejos, insinuações. Foi terrível. Esse pesadelo durou 23 anos, quando conheci o sexo com outro homem. Ainda não me curei do trauma da adolescência, mas estou em processo, como acredito que muita gente também esteja.

O livro traz poemas que eu dedicava a mulheres, namoradas, com a intenção de dedicar a homens, rapazes, que povoavam meus sonhos e desejos (risos).

SC:  O que o levou a lançar um livro fora do país?

O que leva todo gay a fugir de casa: o medo de ser visto, reconhecido, chamado de gay. E escrever em uma língua estrangeira, em um país distante, era a saída. Eu não aguentava mais sufocar tanta repressão, tanto medo, tanto horror. Eu via pessoas serem apedrejadas em Jequié, ouvia história de violência contra gays. Eu não tinha coragem nem mesmo de comprar uma revista erótica, para não ser “confundido” com um gay. O lançamento do livro, apesar de em terras distantes, me deu impulso e coragem para continuar a vida, aceitar mais a homossexualidade. Passei a militar em grupos de defesa dos direitos humanos (aí inseridos os direitos dos gays) e passei a me preocupar mais comigo, com minha felicidade.

SC: Percebe alguma diferença entre o mercado editorial americano e o mercado brasileiro em relação às obras de temática gay?

Guardadas as devidas proporções, pois nos Estados Unidos se investe muito mais em arte do que no Brasil, lá há mais consumo. Mas a discriminação também existe, apesar de em menor grau.

SC:  Você é criador do 1° fã clube oficial do Jean Wyllys e a amizade entre vocês dois está evidenciada em diversos trabalhos seus, inclusive, na antologia de contos LGBT’s, que é dedicada a ele. Conte-nos um pouco sobre esta amizade.

Conheci Jean Wyllys na época do Big Brother. Foi paixão à primeira vista. Paixão pelo trabalho dele, pelas atitudes de vida, pela postura, coerência entre o que ele diz e o que ele vive. Se tem uma qualidade que eu admiro no ser humano é a postura coerente. Eu coleciono reportagens, fotos, revistas, matérias em jornais impressos ou na mídia eletrônica e jamais li algo contraditório dito por ele. Jean Wyllys tem uma inteligência espetacular e a história de vida dele não mudou depois do Reality Show. A família, núcleo primordial da vida dos seres humanos, é sagrada para Jean. A primeira coisa que ele fez ao ganhar o prêmio foi investir pesado no conforto, acesso a educação de qualidade, no aconchego dos familiares. Isso é muito bonito e digno de reportagens. A mídia não se interessa, por óbvio, isso não vende jornais nem revistas.

A maior riqueza que o Jean Wyllys tem é a vida privada dele, a vida particular, a vida familiar. Não vende jornais mas rende amigos, amigos sinceros e verdadeiros. Os amigos que ele possue são de longas datas, da época em que ele era professor e jornalista em Salvador. E não vai mudar, pois foram amizades construídas na sinceridade, no respeito. Falar de Jean Wyllys é falar de respeito ao diferente, à minoria. Então, com minha história de vida, era impossível não me tornar fã número um.

SC:  Difícil falar de Jean Wyllys sem falar de BBB. Recentemente, assistimos à vitória do Marcelo Dourado na 10a edição do programa, que os grupos gays chamaram de vitória da homofobia e do fascismo. Qual a sua opinião a respeito? Considera que houve um retrocesso na sociedade desde a vitória do Jean, que é gay assumido?

Acho que o gay já é mais aceito na sociedade. Principalmente após o Jean Wyllys, que passou outras imagens sobre gay: respeito, inteligência, coerência, humanidade, honestidade. Mas o ódio, a discriminação,não mudam da noite para o dia. Muita gente aceita o gay, pois não pode agredir, matar. Prova disso se tem todo dia nos jornais impressos e na TV, com lésbicas, gays, travestis, transformista e transsexuais sendo assassinados covardemente. Os criminosos, quando presos, quase nunca são condenados e quando são conseguem fugir.

SC: No seu livro Memorial do Inferno, você fala sobre sua passagem pela militância partidária e sobre os motivos que o fizeram abandonar a política. Como você enxerga hoje a política brasileira em relação às causas LGBT’s e qual a sua opinião sobre a ação dos grupos gays militantes?

Eu desisti da militância partidária porque não estava devidamente maduro para abraçar uma luta tão grande. Desde que comecei votar, no entanto, tenho votado nos mesmos candidatos e acompanhado o trabalho deles. A política brasileira tem abraçado bandeiras LGBTs, não porque os políticos tenham mudado, mas devido à luta militante de muitos gays e lésbicas. Em Salvador, por exemplo, a LeoKret do Brasil, transsexual, foi eleita vereadora. Em outros estados tem acontecido fenômeno semelhante, mas tudo é muito inicial. Se não fossem a lutas encampadas por grupos como o GGB (Grupo Gay da Bahia), em Salvador, o Grupo Liberdade Igualdade e Cidadania Homossexual – Glich, de Feira de Santana, o Adamor, em São Sebastião do Passé-BA, o Arco Iris (Rio de Janeiro), o MGA (Movimento Gay de Alfenas e região sul de Minas), as assosiações e grupos de São Paulo e de todo o país, não teríamos horizonte.

Sem luta não há vitória. E lutar nem sempre significa empunhar a bandeira, participar das paradas e manifestações de rua. Este movimentos e manifestações são muito importantes, pois dão a cara a tapa em prol de muitos gays e lésbicas que não têm coragem para se declararem homossexuais. Tem outras formas de militar, como se engajar na política partidária, denunciar anonimamente a violência, escrever em sites e jornais etc. Tudo é válido para mudar o cenário e dar dignidade aos LGBTs.

SC:  Como você avalia o nível dos textos concorrentes ao PrêmioValdeck Almeida de Jesus de Contos LGBT’s?

Excelentes. Recebi textos do Brasil inteiro e foi muito difícil para a equipe avaliar e escolher. Alguns fugiam da temática, outros passavam do tamanho exigido no edital, mas no final a seleção dos doze melhores mostrou um panorama diverso e de muito boa qualidade. São textos curtos, concisos, cada um com uma linguagem e um estilo próprios, mas todos com a mesma característica: o respeito ao diferente.

SC:  Podemos esperar um novo concurso de contos com temática gay para o próximo ano?

Risos. Eu patrocino este prêmio com o dinheiro do meu salário. Em 2010 fiquei no vermelho todos os meses. Vou tentar promover outro concurso em 2011, mas ainda não tenho grana suficiente. Espero que eu consiga.

SC: Onde os leitores podem adquirir a antologia de contos LGBT’s e conhecer suas outras obras?

O livro de contos eu tenho para venda direta, através dos correios. A pessoa entra em contato comigo e pega as instruções (valdeck2007@gmail.com). “Memorial do Inferno” está no site da Livraria Cultura, “Heartache Poems…” pode ser comprado no site Amazon e os demais livros qualquer pessoa adquire comigo mesmo. Mais informações no meu site www.galinhapulando.com

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