Estávamos todos apreensivos. Era o primeiro julgamento de um acusado de ter assassinado a pauladas uma travesti na cidade de Campinas (SP). Depois de inúmeras mortes ao longo das últimas décadas, sem sucesso na busca, prisão e julgamento dos culpados, víamos algo que tanto defendemos ser colocado em prática: a justiça brasileira.
Ficar frente a frente com alguém que é apontado por ter matado uma pessoa que amamos não é uma experiência que se vive com tranquilidade. A brutalidade foi tamanha que o corpo da vítima não foi reconhecido nem pela irmã. Somente depois de ela olhar as pinturas artísticas das unhas dos pés é que foi possível identificar que se tratava de alguém tão querido.
Mas, no início da sessão algo me causou estranhamento. O promotor perguntou ao acusado se ele recebia visitas na prisão. A sequência da argumentação comprovou o que eu pensei ser improvável. A tentativa de sensibilizar o júri popular era apostar na imagem de mau menino do moço e de boa menina da vítima, principalmente depois de ele ter contado que assumiu ser usuário de crack, supostamente para se livrar mais rápido da primeira prisão por tráfico. Ele havia acabado de cumprir a pena quando matou, segundo as testemunhas, a nossa querida amiga.
Em relação a ela, não tínhamos dúvidas que era uma ótima pessoa. O seu sorriso era puro reflexo do seu grande coração. Mas daí apostar que o fato da família e dos amigos terem lotado o auditório em demonstração de solidariedade a sua memória naquela tarde e o fato do rapaz não ter recebido visitas na cadeia no período em que ficou preso ser para os jurados um diferencial para que eles o incriminassem, já é demais.
Sem dúvidas, existem pessoas que não costumam ser boas. Mas, nós estávamos julgando o ato ou o valor moral de alguém que supostamente o cometeu? Por uma pessoa não ser amada, por ela não ter família e amigos que a visitem, podemos desconfiar do seu valor ou punir sem culpa? Neste momento não deveria importar quem a pessoas era, mas o que ela supostamente fez. Não é por isso que a justiça cumpre a lei sem ver a quem?
Um amigo me relatou algo parecido. Aconteceu em uma cidade também do interior do Estado de São Paulo. Um homem acusado de ter estuprado uma prostituta teve muita dificuldade de ser julgado culpado, nem tanto pela falta de provas, mas pelo fato da mulher ter a profissão que tinha.
Então, se a minha amiga travesti tivesse um histórico moral que a defensoria, o júri e quem mais estivesse ali duvidasse, ela seria julgada, depois de morta, culpada/merecedora pelo destino que teve? Ou vocês acham que foi a toa que o defensor do rapaz perguntou a família se ela se prostituía ou usava drogas? Pelo que vi, se a resposta tivesse sido sim, seguramente o fato teria sido menos comovente, o que provavelmente implicaria em uma pena menor ao condenado.
É quase o mesmo que ouvimos dos jovens financeiramente privilegiados que mataram queimado o índio Galdino em Brasília: "Pesávamos que ele fosse morador de rua". Ou daqueles outros, igualmente cheios da grana, que agrediram a trabalhadora doméstica no ponto de ônibus do Rio de Janeiro pensando que ela fosse prostituta.
Sabendo dessa lógica de desqualificação moral vigente em nossa sociedade, a tentativa do promotor a todo o momento foi a de afirmar que não importava quem era a vítima, nem mesmo as escolhas sexuais que ela fez na vida. Isso era uma prova do medo que ele tinha dos jurados olharem para o fato como sendo o que realmente era: o assassinato de uma travesti, não de uma pessoa que valesse tanto para a sociedade! A lógica do promotor que buscava desmoralizar o culpado por ele não ter ninguém que se preocupasse com ele também poderia ser usada pelos jurados para condenar/julgar a vitima como sendo a grande provocadora da sua própria morte, ou até mesmo como não tendo a sociedade perdido grande coisa.
O que mais me assustava, assim como alguns amigos presentes, era que a argumentação sobre o acusado recaia também sobre nós. A ideia de que você merece ser julgado culpado pelo valor moral que associam a você e não pelo o que você necessariamente fez pode levar muita gente inocente ao bando dos réus. Em outras palavras, se a lição para não ser condenado é ser "gente de bem", estamos em maus lençóis. Afinal, não é novidade nenhuma que esse discurso na maior parte dos contextos de violência é exatamente aquele que explica muitas agressões e mortes de viados Brasil a fora.
Sabemos muito bem que não somos tão bons quanto querem que sejamos (ainda bem!). Por mais conservadores que possamos ser, não cumprimos com o que se espera de nós, especialmente no que tange o gênero e a sexualidade. Na verdade, ninguém é. O modelo de bondade é inatingível a ponto de quem se julgar moralmente santo já atrair todos os olhares duvidosos sobre si. Então, o que a Justiça tem feito? Se a motivação homofóbica que sentíamos ter sido a causa do assassinato de uma pessoa que amávamos já tivesse sido tipificada como crime seríamos cúmplices desta lógica de desmoralização que recai sobre os condenados e também nos atinge?
Penso que o problema é muito maior do que não ter uma lei, o que não significa que ela não deva existir. O problema está antes de tudo na lógica com as quais a lei se sustenta. Nesse sentido, a exceção do acusado do assassinato da travesti assassinada em Campinas ter ido a julgamento só comprova a regra: uns continuam valendo mais do que os outros, mesmo quando muitos afirmam que a justiça tenha sido feita. Assim, a louvável responsabilização de quem cometeu a violência foi garantida.
O assassino foi condenado a quinze anos de prisão, sob o crucifixo pregado no alto da parede do tribunal. Mas, a sensação que pairava era a de que "ele mereceu", sem pensar que parte dos valores desqualificadores e desmoralizantes que o condenou é também o que continua matando muita gente por aí.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.
Ficar frente a frente com alguém que é apontado por ter matado uma pessoa que amamos não é uma experiência que se vive com tranquilidade. A brutalidade foi tamanha que o corpo da vítima não foi reconhecido nem pela irmã. Somente depois de ela olhar as pinturas artísticas das unhas dos pés é que foi possível identificar que se tratava de alguém tão querido.
Mas, no início da sessão algo me causou estranhamento. O promotor perguntou ao acusado se ele recebia visitas na prisão. A sequência da argumentação comprovou o que eu pensei ser improvável. A tentativa de sensibilizar o júri popular era apostar na imagem de mau menino do moço e de boa menina da vítima, principalmente depois de ele ter contado que assumiu ser usuário de crack, supostamente para se livrar mais rápido da primeira prisão por tráfico. Ele havia acabado de cumprir a pena quando matou, segundo as testemunhas, a nossa querida amiga.
Em relação a ela, não tínhamos dúvidas que era uma ótima pessoa. O seu sorriso era puro reflexo do seu grande coração. Mas daí apostar que o fato da família e dos amigos terem lotado o auditório em demonstração de solidariedade a sua memória naquela tarde e o fato do rapaz não ter recebido visitas na cadeia no período em que ficou preso ser para os jurados um diferencial para que eles o incriminassem, já é demais.
Sem dúvidas, existem pessoas que não costumam ser boas. Mas, nós estávamos julgando o ato ou o valor moral de alguém que supostamente o cometeu? Por uma pessoa não ser amada, por ela não ter família e amigos que a visitem, podemos desconfiar do seu valor ou punir sem culpa? Neste momento não deveria importar quem a pessoas era, mas o que ela supostamente fez. Não é por isso que a justiça cumpre a lei sem ver a quem?
Um amigo me relatou algo parecido. Aconteceu em uma cidade também do interior do Estado de São Paulo. Um homem acusado de ter estuprado uma prostituta teve muita dificuldade de ser julgado culpado, nem tanto pela falta de provas, mas pelo fato da mulher ter a profissão que tinha.
Então, se a minha amiga travesti tivesse um histórico moral que a defensoria, o júri e quem mais estivesse ali duvidasse, ela seria julgada, depois de morta, culpada/merecedora pelo destino que teve? Ou vocês acham que foi a toa que o defensor do rapaz perguntou a família se ela se prostituía ou usava drogas? Pelo que vi, se a resposta tivesse sido sim, seguramente o fato teria sido menos comovente, o que provavelmente implicaria em uma pena menor ao condenado.
É quase o mesmo que ouvimos dos jovens financeiramente privilegiados que mataram queimado o índio Galdino em Brasília: "Pesávamos que ele fosse morador de rua". Ou daqueles outros, igualmente cheios da grana, que agrediram a trabalhadora doméstica no ponto de ônibus do Rio de Janeiro pensando que ela fosse prostituta.
Sabendo dessa lógica de desqualificação moral vigente em nossa sociedade, a tentativa do promotor a todo o momento foi a de afirmar que não importava quem era a vítima, nem mesmo as escolhas sexuais que ela fez na vida. Isso era uma prova do medo que ele tinha dos jurados olharem para o fato como sendo o que realmente era: o assassinato de uma travesti, não de uma pessoa que valesse tanto para a sociedade! A lógica do promotor que buscava desmoralizar o culpado por ele não ter ninguém que se preocupasse com ele também poderia ser usada pelos jurados para condenar/julgar a vitima como sendo a grande provocadora da sua própria morte, ou até mesmo como não tendo a sociedade perdido grande coisa.
O que mais me assustava, assim como alguns amigos presentes, era que a argumentação sobre o acusado recaia também sobre nós. A ideia de que você merece ser julgado culpado pelo valor moral que associam a você e não pelo o que você necessariamente fez pode levar muita gente inocente ao bando dos réus. Em outras palavras, se a lição para não ser condenado é ser "gente de bem", estamos em maus lençóis. Afinal, não é novidade nenhuma que esse discurso na maior parte dos contextos de violência é exatamente aquele que explica muitas agressões e mortes de viados Brasil a fora.
Sabemos muito bem que não somos tão bons quanto querem que sejamos (ainda bem!). Por mais conservadores que possamos ser, não cumprimos com o que se espera de nós, especialmente no que tange o gênero e a sexualidade. Na verdade, ninguém é. O modelo de bondade é inatingível a ponto de quem se julgar moralmente santo já atrair todos os olhares duvidosos sobre si. Então, o que a Justiça tem feito? Se a motivação homofóbica que sentíamos ter sido a causa do assassinato de uma pessoa que amávamos já tivesse sido tipificada como crime seríamos cúmplices desta lógica de desmoralização que recai sobre os condenados e também nos atinge?
Penso que o problema é muito maior do que não ter uma lei, o que não significa que ela não deva existir. O problema está antes de tudo na lógica com as quais a lei se sustenta. Nesse sentido, a exceção do acusado do assassinato da travesti assassinada em Campinas ter ido a julgamento só comprova a regra: uns continuam valendo mais do que os outros, mesmo quando muitos afirmam que a justiça tenha sido feita. Assim, a louvável responsabilização de quem cometeu a violência foi garantida.
O assassino foi condenado a quinze anos de prisão, sob o crucifixo pregado no alto da parede do tribunal. Mas, a sensação que pairava era a de que "ele mereceu", sem pensar que parte dos valores desqualificadores e desmoralizantes que o condenou é também o que continua matando muita gente por aí.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível.
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