Mais um passo do Poder Judiciário brasileiro no reconhecimento da família homoafetiva. Desta vez, na Bahia, através de uma decisão pioneira no Estado.
Duas mulheres em união sólida de afeto há aproximadamente onze anos, E. M. dos S. e M. S. P., realizaram, juntas, o sonho da maternidade. A primeira, E. M. dos S., após algumas tentativas, engravidou por meio de inseminação artificial - com o seu material genético e o de um doador anônimo -, contando com o apoio irrestrito da sua companheira, M. S. P. O pequeno L. O. P dos S, portanto, do ponto de vista estritamente biológico, é filho de E. M. dos S., mas, afetivamente, o é, também, de M. S.P – que sempre compartilhou de todas as responsabilidades emocionais, materiais e acompanhou, de perto, todo o processo de um desejo conjunto. Como na certidão de nascimento e nos demais documentos da criança somente constava o nome de E. M. dos S. (a que gestou), o casal resolveu acionar o Judiciário para que a dupla maternidade fosse reconhecida. Assim, M. S. P. ingressou com o pedido de adoção de L. O. P dos S, filho gestado pela sua companheira - em Salvador, perante a 1ª Vara da Infância e da Juventude.
Desde a 1ª edição do meu livro A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais, tenho versado sobre a relevância de o Poder Judiciário reconhecer a união sólida, mutuamente correspondida e justificada pelo amor entre pessoas, como teia familiar merecedora de respeito e de tutela jurídica, independente das suas orientações afetivo-sexuais. Com efeito, a convivência notória, estável e ostensiva, amalgamada pelo afeto, é família e se coaduna com o “caput” do art. 226 da Constituição Federal de 1988 na sua condição de cláusula geral de inclusão. No labor jurisdicional, não podem ser protegidas algumas entidades familiares e excluídas outras (como as uniões entre homossexuais), somente por conta da ausência de uma previsão literal do legislador. Cabe, pois, ao Judiciário, no caso das famílias homoafetivas, suprir a lacuna do ordenamento, através da analogia com a união estável.
Tem sido de grande relevância, nos Juizados da Infância e da Juventude, os trabalhos de assistentes sociais e psicólogos(as) – profissionais, sem dúvida, preparados para sondar a ambiência familiar e a interação dos pais com a prole. Neste caso pioneiro no Estado da Bahia, no seu parecer fundamentado, a Psicóloga da 1ª Vara da Infância e da Juventude, Tatiana Lago, pontuou que “acontecimentos narrados tanto pela genitora quanto pela requerente, bem como as atitudes da mesma frente a tais episódios, também indicaram o estabelecimento de uma relação afiliativa incondicional, em que L. é reconhecido como verdadeiro filho, uma vez que a qualidade do vínculo estabelecido não foi comprometida pela ausência do laço biológico. (...) O preconceito que perpassa pela temática da homoafetividade foi amplamente discutido com o casal, o que possibilitou a percepção de um posicionamento consciente e maduro, por parte de ambas, frente a tal condição, o que reflete beneficamente na relação com L. e, portanto, no desenvolvimento psíquico do mesmo. (...) M. é reconhecida por L. como uma referência parental e, portanto, para a criança, a inclusão de M. no registro de L. oferecerá ao mesmo uma representação simbólica mais coerente entre a realidade vivenciada por ele e a legitimação desta. (...) As interações promovidas indicaram a existência de um vínculo familiar saudável e de um convívio hábil à manutenção de um laço afetivo existente entre M. e L., em que a pleiteante demonstrou encontrar-se apta a continuar assumindo as responsabilidades com a criança, não tendo sido detectado, durante as avaliações, nenhum comprometimento de ordem psicológica que pudesse inabilitá-la.” Assim, conclui o seu parecer: “Este pedido reforça o processo de naturalização de uma relação que não pode ser vista de forma inadequada ou patológica e, menos ainda, prejudicial à criança.”
A representante do Ministério Público, Drª. Jaqueline Duarte, manifestou-se favoravelmente à adoção de L. por M., ponderando que “as previsões constitucionais e civis não podem ser entendidas no sentido de que fora delas outros comportamentos não possam, também, ser regulamentados de forma idêntica.” Ainda, posicionou-se frisando que a troca de afeto, com o compartilhamento de uma vida em comum, é o que forma uma entidade familiar; daí a concluir: “Do exposto, opina o Ministério Público favoravelmente à ADOÇÃO requerida em favor da criança L. O. M. dos S., que passará a ser filho de M. S. P e de E. M. dos S. e a chamar-se L. O. P. dos S., consignando-se os nomes dos avós, a fim de que produza seus jurídicos e legais efeitos, na forma do quanto estabelece o art. 47 e seguintes do Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Em sua louvável decisão (sentença datada de 09 de março de 2010), o Dr. Emílio Salomão Pinto Resedá demonstrou senso ético-humanístico, promoveu a necessária adequação da legislação disponível à realidade fática e se manifestou de modo favorável ao pleito, aduzindo que, “no caso concreto, a adotante convive homoafetivamente com a genitora do adotando, constituindo uma entidade familiar alicerçada na afetividade, estabilidade e ostensividade. Esse modelo familiar encontra apoio nos valores constitucionais, principalmente no princípio da dignidade da pessoa humana, estando implicitamente protegido pela Carta Magna no seu art. 226 e parágrafos. A Constituição assegura ao sujeito liberdade de escolha das relações existenciais e afetivas para constituir a entidade familiar que melhor corresponda à sua realização existencial, nela desenvolvendo a sua própria personalidade. Na verdade, não é a família “per se” que é constitucionalmente protegida, mas o lócus indispensável de realização e desenvolvimento da pessoa humana.”
Ao prever, no caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", o legislador constituinte, rompendo com uma história de verdadeira exclusão constitucional, pôs, pela primeira vez sob a tutela estatal, a entidade familiar, sem dizer, necessariamente, qual tipo de família é merecedor de proteção. Se até a Constituição de 1967, a única família albergada pela proteção estatal era a selada pelo casamento, a partir de Lei Maior de 1988, esta realidade limitante foi modificada. Assim, o que delineia, hoje, o que é uma base familiar é a convivência afetiva das pessoas, que deve gerar efeitos na órbita do Direito das Famílias.
Por isso, o magistrado, neste caso, de modo plausível, reconhece que “sem dúvida, hoje, a família é núcleo descentralizado, igualitário, democrático e, não necessariamente, heterossexual. Apoiada nos valores constitucionais e caracterizada como uma realidade presente, não há como desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar. A falta de leis que regulamentem expressamente essas relações não é impedimento para a sua existência. (...) Na hipótese dos autos, a adotante, o Adotando e a genitora biológica deste constituem um núcleo familiar fundado no afeto e no amor. (...) Restou comprovado nos autos, de maneira indubitável, que o Adotando convive em um ambiente familiar consolidado e harmônico, apto a garantir-lhe o pleno desenvolvimento de suas habilidades cognitivas e emocionais. (...) Ademais, não há nenhuma regra legal no nosso ordenamento jurídico, mais especificamente, no Código Civil ou no ECA, que permita ou proíba a colocação do menor em lar substituto cujo titular seja homossexual. Logo, a nosso ver, o homossexual pode, sim, adotar uma criança ou adolescente. (...) Como, no caso em comento, trata-se de adoção por um dos conviventes do filho do outro, mantém-se o vínculo de filiação entre o Adotando, sua mãe biológica e respectivos parentes.” E, assim, o Juiz conclui a relevante decisão: “Pelas razões expostas, ante o cumprimento de todos os trâmites legais e o atendimento dos requisitos exigidos por lei, em consonância com o parecer do Ministério Público, julgo procedente o pedido da inicial, para reconhecer L. O. P dos S. como filho legítimo de E. N. dos S. e de M. S. P. nos termos dos arts. 39 e seguintes da Lei 8.069/90, mantendo-se o nome do infante L. O. P dos S. Determino que se oficie ao Cartório competente para as devidas anotações no assento de nascimento do Adotando, onde deverão constar os nomes dos avós, sem que haja menção à condição materna ou paterna dos mesmos. Após o trânsito em julgado da sentença e o cumprimento de todas as formalidades legais, arquivem-se os autos e dê-se baixa nos registros do cartório.”
Em mais este exemplo de avanço, o Poder Judiciário, tão somente, reconheceu o que, de fato, já existe psiquicamente: o afeto especial que une E. N. dos S., M. S. P. e L. O. P dos S. Somente o preconceito para dificultar que se enxergue, na vida destas pessoas amalgamadas pelo amor, uma família. E. N. dos S., M. S. P. e L. O. P dos S. estão felizes e nós também compartilhamos deste contentamento.
O que se descortina em matéria de reconhecimento do AMOR em face do Poder Judiciário brasileiro, a partir das posições que esse vem tendo que assumir (ainda convivendo com atávicos preconceitos), aponta a direção mais bonita: a que independe de qualquer condição para que tal sentimento seja, efetivamente, atestado em toda sua inteireza e nas implicações que traz na vida relacional-familiar das pessoas – para além de cor, sexo, orientação afetivo-sexual, nuanças de gênero... Conjugar, no exercício da existência concreta, o verbo AMAR persistirá justificando a formação de uma família, qualquer que seja essa. Realmente, para enxergar a família, é preciso enxergar o amor. Se não se identifica afeto, não se vê família. A adoção, no seio da convivência de casais homossexuais, progressivamente acolhida pelo Judiciário brasileiro, é, tão somente, mais um dos inúmeros reflexos da realidade familiar com suas demandas por mais zelar, por mais cuidado e mais amor. Por isso, continuo ratificando e ecoando o cancioneiro: “Eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima do muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”.
Enézio de Deus Silva Júnior – Advogado, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), autor do livro A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais (4ª edição / Juruá Editora). eneziodedeus@hotmail.com
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