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domingo, 14 de novembro de 2010

Dário Neto questiona: por que pode se usar "a presidenta", mas não "a travesti"?

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Após a eleição de Dilma Rousseff, gramáticos debatem: a presidente ou a presidenta. E como ficam as travestis?  

Por Dário Neto para o site Mundo Mais

Após a eleição da presidenta Dilma Rousseff, uma discussão no campo da gramática tratada como secundária tornou-se um grande debate entre gramáticos nas diversas mídias brasileiras. “A Presidente ou A Presidenta?” Qual sua forma correta?

Sem entrar no mérito dessa segunda pergunta sobre o conceito de correto ou não, uma vez que a língua viva se transforma em seu uso cotidiano, o que me chama a atenção é o lado supérfluo que ocupa o debate em torno do resultado das eleições presidenciais.

Alguns gramáticos têm defendido a validade dos dois usos, outros mais conservadores, por meio de uma noção puramente subjetiva, defendem a manutenção de “presidente” acompanhada pelo artigo feminino e outros de postura ideológica feminista – com os quais me identifico – reivindicam o uso do adjetivo no feminino. Embora essa discussão esteja pautando a mídia ultimamente, não gostaria de abordá-la pela “porta da frente”, mas por outra porta.

Se a concordância gramatical ou manutenção das formas determinadas pela gramática são tão importantes assim, pergunto: por que os guardiões da norma culta, de um modo geral, não se incomodam com o fato de, notícia após notícia sobre travestis no Brasil, a imprensa violar a sacrossanta regra gramatical quanto à concordância nominal? Se não, vejamos: ao tratar da morte da travesti Andréa Albertini, o site da Folha de S. Paulo, em 09 de julho de 2009, apresenta a matéria do seguinte modo:

"Morreu nesta quinta-feira O travesti Andréia Albertini, que se envolveu em polêmica com o atacante Ronaldo, do Corinthians. André Luiz Ribeiro Albertini, nome verdadeiro do travesti, estava internado na UTI do Hospital Nardini, em Mauá (Grande SP), havia dois dias." [Folha de S. Paulo, 09 de julho de 2009]

Apenas como um exemplo das diversas notícias que tratam sobre travestis, vemos a insistência de jornalistas manterem o artigo masculino, apesar de se referirem a nomes femininos conforme o texto. Segundo a Moderna Gramática Portuguesa do professor Evanildo Bechara sobre concordância nominal: “A palavra determinante irá para o gênero e número da palavra determinada”.

Assim, no exemplo citado a palavra determinada é o substantivo próprio Andréia, sendo o artigo e o adjetivo seus determinantes. O Dicionário Aurélio, em sua segunda edição, que tenho em mãos, indica o termo “travesti” como substantivo masculino. Ora, poderiam argumentar que, se travesti é um substantivo masculino, a concordância está correta. Contudo, a função desta palavra está de acordo com a definição dada por Bechara para a função de adjetivo:

"(...) é a classe de lexema que se caracteriza por constituir a delimitação, isto é, as possibilidades designativas do substantivo, orientando delimitativamente a referência a uma parte ou a um aspecto do denotado". (Idem, Ibidem).

Logo, o termo travesti cumpre sua função adjetivante ao nome próprio Andréia. Nessa lógica, o artigo definido determina não o adjetivo travesti, mas o substantivo próprio, devendo, portanto, concordar em gênero com o nome. Desse modo, vemos constantemente a violação da regra gramatical pela imprensa ao insistir em manter o uso do masculino, embora se refira a um substantivo feminino.

Obviamente, tal prática não se trata apenas de um “erro” de concordância nominal da Língua Portuguesa, mas à resistência de nossa cultura conservadora em aceitar que a identidade de gênero de um indivíduo não deve ser determinada pelo fator biológico, mas pela identidade social que o indivíduo assume para si.

Se nossas militantes Janaína Lima ou Miriam Queirós, ambas de São Paulo, Fernanda Benvenute, da Paraíba, Keila Simpson, da Bahia, e muitas outras transexuais e travestis do Brasil e do mundo se apresentam com o nome feminino, porque a imprensa não respeita essa identificação e utiliza o artigo no feminino conforme as regras gramaticais?

Violação – Se essas regras são tão importantes a ponto de suscitar o debate sobre o uso do termo “presidente” para os defensores da gramática, por que os tais defensores não se incomodam ao ler na imprensa essa constante violação das regras que tanto defendem? A razão disso não pode denotar outra coisa, senão a parcialidade de muitos gramáticos na defesa da forma “correta” do termo presidente. O movimento de travestis e transexuais tem lutado, com insistência, para o uso legal de seus prenomes com os quais se identificam, tornando essa discussão relevante e fundamental, embora os gramáticos e a imprensa não lhe deem o devido tratamento.

Por considerar como salutar à nossa sociedade a discussão em torno da concordância nominal entre o artigo e o prenome de travestis e transexuais – não meramente pelas regras do Português, mas por seu caráter político e ideológico –, convido tanto a imprensa, quanto os professores da Língua Portuguesa a mudarem o foco do debate em torno da “demanda” presidencial e discutirem, de modo muito substancial, a violação gramatical dos direitos de travestis e transexuais como forma de propagar, no debate, uma educação fundada na tolerância, no respeito e na dignidade da pessoa humana.
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Dário Neto, membro do Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual do Município de São Paulo, membro do Prisma – USP, grupo universitário de Diversidade Sexual, membro do Conselho Universitário da USP, doutorando em Literatura Brasileira pela USP e diácono da Igreja da Comunidade Metropolitana – ICM-SP

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